3. Primeiro concerto para piano – Chopin

Este artigo foi publicado no Neue Zeitschrift für Musik em 1836 e incluído no Gesammelte Schriften über Musik und Musiker, tomo I, p. 275, sob o título original: Friedrich Chopin, erstes Concert für Pianoforte mit Begleitung des Orchesters. Werk 11. Zweites Concert von demselben für das Pianoforte mit Orchester. Werk 21. O artigo é assinado pelos pseudónimos de Schumann Florestan e Eusebius e o compositor visado é Frédéric Chopin.

Trata-se de um dos textos mais poéticos que Schumann escreveu no qual discute o papel e a relevância que a crítica musical pode ter para a música. Sob os pseudónimos de Florestan e Eusebius, Schumann apresenta duas perspetivas bastante divergentes num estilo literário também diferente e que é paradigmático da personalidade e registo literários diferentes de cada desses pseudónimos. A simples leitura deste texto permite supor os traços de personalidade de cada um.

 

Tradução:

            Primeiro concerto para piano com acompanhamento de orquestra. Opus 11.     Segundo concerto para piano com orquestra. Opus 21.

            1. [Florestan]

Quando vos encontrardes perante adversários, ó jovens artistas, alegrai-vos com esta indicação da força do vosso talento e atribui-lhe tanto mais importância quanto mais obstinados forem aqueles. Continua a ser surpreendente que, naqueles anos tão áridos anteriores a 1830, quando tínhamos que agradecer aos céus por qualquer palha de melhor qualidade que aparecesse, também a crítica – sempre atrasada a não ser que brote de uma cabeça criativa – ainda encolhesse os ombros quando se tratava do reconhecimento de Chopin chegando até a haver quem afirmasse que as composições de Chopin só serviam para serem rasgadas. Mas basta! O Duque de Modena também ainda não reconheceu Louis Philippe e se o trono das barricadas não assenta em pés de ouro, tal não se deve à ação do Duque[1]. Talvez devesse aqui referir de passagem um célebre jornal domingueiro que, por vezes, segundo ouvimos dizer (porque nós não o lemos e regozijamo-nos, nesse aspeto, por termos uma certa semelhança com Beethoven (ver os estudos de Beethoven editados por Seyfried), que, por detrás de uma afável máscara nos lança um olhar tão terno quanto um punhal e isto só porque uma vez insinuei a brincar o seguinte acerca de um dos seus colaboradores que escrevera sobre as variações de Don Juan de Chopin: escrevi que ele, o colaborador, tal como um verso mal escrito, tinha um par de pés a mais e que deveria ficar atento porque um dia seria preciso cortá-los! Por que razão haveria de me lembrar disso logo hoje, que regresso do concerto em fá menor de Chopin? Não merece a pena. Contra veneno basta leite, leite magro! Sim, o que é um ano de um jornal musical comparado com um concerto de Chopin? O que é o delírio de um académico comparado com o de um poeta? O que valem dez editoriais contra um adagio no segundo concerto? Na verdade, irmãos de David, não vos consideraria dignos de tais palavras se não pensasse que fosseis capazes de compor obras como essas sobre as quais escreveis, exceto algumas, tais como precisamente este segundo concerto, aos calcanhares do qual, nem mesmo todos juntos conseguiríamos chegar, nem tão pouco para lhe beijar a bainha. Fora com os jornais musicais! A prova do êxito e o objetivo último de um bom jornal deveria ser (muitos trabalham já nesse sentido) o de elevar-se tão alto que já ninguém quisesse lê-lo por aborrecimento e que o mundo perante tamanha produtividade deixasse de querer ouvir fosse o que fosse do que está escrito – a meta mais elevada de um crítico (como alguns se esforçam por fazê-lo) seria tornar-se supérflua; a melhor forma de falar sobre a música é fazer silêncio. Divertidos os pensamentos de um autor de jornais que não devem considerar-se deuses e senhores dos artistas, já que estes os poderiam deixar morrer à fome. Fora com os jornais! Mesmo que honrada, a crítica não passa de um mero fertilizante de obras futuras que, porém, germinam em número suficiente só com a ajuda da luz divina. Voltando ao início, porquê escrever sobre Chopin? Porquê obrigar os leitores a passar por esse aborrecimento? Porque não criar em primeira mão, tocar, escrever e compor por si próprio? Pela última vez, fora com os jornais musicais, os específicos e os outros!

            2. [Eusebius]

Se as coisas fossem como quer a cabeça desmiolada do Florestan, ele poderia chamar recensão ao texto acima e com isso acabar por fechar o jornal. E ele deveria também recordar-se de que ainda temos uma obrigação perante Chopin, sobre quem ainda nada escrevemos nos nossos livros, e de que o mundo atribuirá a nossa ausência de palavras a outra coisa que não a nossa admiração por ele. Pois, se ainda está por fazer a glorificação através das palavras (a mais bonita já foi partilhada em milhares de corações), encontro a razão para isso, por um lado, no temor que nos invade perante um assunto de que gostamos tanto e que por isso receamos não saber descrever com a devida proporção de dignidade, nem de conseguirmos atingir a sua profundidade e elevação, por outro, pelas íntimas relações artísticas que estabelecemos com este compositor. Finalmente, também porque Chopin nas suas últimas composições, parece ter escolhido, não um caminho diferente, mas antes um caminho mais elevado, cujo rumo e possível meta esperávamos ver mais clarificados antes de podermos deles dar conta fidedigna aos nossos amigos no estrangeiro…

O génio cria reinos cujas regiões são depois distribuídas por uma mão suprema entre os talentos para que estes se ocupem dos pormenores e as completem, algo que ao primeiro, na sua atividade mil vezes mais solicitada e intensa, seria impossível fazer. Tal como outrora, por exemplo, Hummel[2] seguiu a voz de Mozart revestindo as ideias do mestre com um véu mais brilhante e esvoaçante, também Chopin seguiu as de Beethoven. Ou sem imagens: tal como Hummel trabalhou o estilo de Mozart ao pormenor, arranjando-o especificamente para o instrumento do virtuoso, também Chopin conduziu o espírito de Beethoven para a sala de concerto.

Chopin não surgiu acompanhado de um exército orquestral como fazem os grandes génios; ele possui apenas um pequeno séquito, mas este pertence-lhe por completo até ao último herói.

A sua escola, contudo, foi a dos grandes mestres, a de Beethoven, a de Schubert, a de Field[3]. Acreditamos que com o primeiro apurou o espírito na audácia, com o segundo o coração na delicadeza e com o terceiro a sua mão em destreza.

Quando em 1830 se elevou a grande voz do povo no ocidente[4], já ele se apresentava equipado com os conhecimentos profundos da sua arte e plenamente consciente da sua força. Centenas de jovens aguardavam o momento: mas Chopin foi um dos primeiros sobre a muralha atrás da qual teve lugar uma restauração frouxa e um filistenismo mesquinho. Os golpes foram desferidos à esquerda e à direita e os filisteus acordaram zangados, gritando: “Vejam os insolentes;” enquanto outros nas costas dos revolucionários gritavam: “Que coragem gloriosa!”

Juntamente com isso e com a conjuntura favorável dos tempos e da situação, o destino fez ainda mais para que Chopin fosse reconhecido e interessante aos olhos de todos, deu-lhe uma nacionalidade forte e original: a nacionalidade polaca. E dado que aquele país cumpre agora um período de luto[5], isso atrai-nos ainda mais neste artista meditativo. Ainda bem para ele que a Alemanha indiferente não o tenha reconhecido desde logo e que assim o seu génio o tenha levado para uma das capitais do mundo onde pôde compor livremente e alimentar a sua cólera. Pois, se o poderoso monarca autocrata do norte[6] soubesse que, nas obras de Chopin, nas simples melodias das suas mazurcas, o inimigo ameaça, cedo teria proibido a sua música. As obras de Chopin são canhões camuflados com flores.

Na sua origem, no destino do seu país, jaz assim a explicação das suas qualidades e também dos seus defeitos. Quando falamos de entusiasmo, de graciosidade, de presença de espírito, de fervor ou de nobreza, quem não pensa logo nele, mas quem não o faria também se falássemos de assombro, de excentricidade doentia e até de ódio e de ferocidade?

Todas as primeiras composições de Chopin comportam essa nítida marca de identidade nacional.

Mas a arte exigia mais. O reduzido interesse do solo em que nasceu teve que ser sacrificado em favor da cidadania universal e nas suas obras mais recentes já se perde aquela peculiar fisionomia sarmática[7]; a sua expressão inclina-se cada vez mais na direção do ideal universal desde há muito criação dos celestiais gregos, de modo que, seguindo um caminho diferente, acabamos por nos encontrar de volta em Mozart.

Disse: “cada vez mais” porque ele não renega completamente as suas origens e não o deverá fazer. Mas quanto mais delas se distanciar, maior será a sua importância para a arte em geral.

Se quiséssemos de algum modo explicar por palavras a importância que Chopin em parte já alcançou, teríamos que dizer que ele contribui para aquele tipo de reconhecimento cujos fundamentos parecem cada vez mais urgentes: Só poderá haver um progresso da nossa arte se antes houver um progresso dos artistas em direção a uma aristocracia espiritual, cujos estatutos pressuponham, e não apenas exijam, o conhecimento das artes manuais básicas e que vedariam o acesso a quem não possuísse talento suficiente para conseguir o que exige dos outros, nomeadamente fantasia, sentimento e espírito… e tudo isto, para induzir a época mais elevada de uma cultura musical genérica, em que nenhuma dúvida possa pairar sobre o que é autêntico ou sobre as múltiplas formas pelas quais esse se manifesta e em que por musicalidade, se entenda aquela ressonância interna e viva, aquela compaixão tornada ativa, aquela faculdade de absorver e reproduzir, para que na união entre produtividade e reprodutividade inerente ao artista nos aproximemos gradualmente das metas mais elevadas da arte.

[1] Schumann refere-se certamente às revoltas políticas que ocorreram em vários reinos europeus no seguimento da instituição da monarquia constitucional em França em 1830 após a revolução de julho que proclamou rei Louis Philippe I, o rei dos franceses. A monarquia constitucional francesa era vista como um modelo a copiar pelas fações mais liberais de outros reinos europeus, mas como uma natural ameaça ao poder pelos monarcas desses reinos, nos quais se incluía o Duque de Modena, que reprime pela força a revolta no seu ducado e não reconhece o rei francês (N.T.)

[2] Johann Hummel (1778-1837) foi um pianista e compositor austríaco (N.T.).

[3] John Field (1782-1837) foi um pianista e compositor irlandês conhecido como o primeiro compositor de noturnos (N.T.).

[4] Referência à onda revolucionária na Europa que teve lugar no ano de 1830, em alguns países também conhecida como a revolução romântica (N.T.).

[5] Schumann referir-se-á à pesada derrota sofrida pelos insurgentes polacos que lutavam pela restauração da independência do seu país relativamente aos ocupantes russos (N.T.).

[6] Referência implícita a Nicolau I, Czar da Rússia de 1825 a 1855, que instaurou um regime absolutista e eliminou os movimentos nacionalistas (N.T.).

[7] Antigo povo espalhado do Báltico ao Mar Negro, conquistado pelos Godos no século III. Fundiram-se em seguida com os Eslavos (N.T.).

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